(Miguel Esteves Cardoso)
Desde que a Maria João e eu fizemos dez anos de casados
que estou para escrever sobre o casamento. Depois caí na asneira de ler uns
livros profissionais sobre o casamento e percebi que eu não percebo nada sobre
o casamento.
Confesso que a minha ambição era a mais louca de todas: revelar os segredos de
um casamento feliz. Tendo descoberto que são desaconselháveis os conselhos que
ia dar, sou forçado a avisar que, quase de certeza, só funcionam no nosso
casamento.
Mas vou dá-los à mesma, porque nunca se sabe e porque todos nós somos muito
mais parecidos do que gostamos de pensar.
O casamento feliz não é nem um contrato nem uma relação. Relações temos nós com
toda a gente. É uma criação. É criado por duas pessoas que se amam.
O nosso casamento é um filho. É um filho inteiramente dependente de nós. Se nós
nos separarmos, ele morre. Mas não deixa de ser uma terceira entidade.
Quando esse filho é amado por ambos os casados - que cuidam dele como se cuida
de um filho que vai crescendo -, o casamento é feliz. Não basta que os casados
se amem um ao outro. Têm também de amar o casamento que criaram.
O nosso casamento é uma cultura secreta de hábitos, métodos e sistemas de
comunicação. Todos foram criados do zero, a partir do material do eu e do tu
originais.
Foram concordados, são desenvolvidos, são revistos, são alterados, esquecidos e
discutidos. Mas um casamento feliz com dez anos, tal como um filho de dez anos,
tem uma personalidade mais rica e mais bem sustentada, expressa e divertida do
que um bebé com um ano de idade.
Eu só vivo desta maneira - que é o nosso casamento - vivendo com a Maria João,
da maneira como estamos um com o outro, casados. Nada é exportável. Não há
bocados do nosso casamento que eu possa levar comigo, caso ele acabe.
O casamento é um filho carente que dá mais prazer do que trabalho. Dá-se de
comer ao bebé mas, felizmente, o organismo do bebé é que faz o trabalho
dificílimo, embora automático, de converter essa comida em saúde e crescimento.
Também o casamento precisa de ser alimentado mas faz sozinho o aproveitamento
do que lhe damos. Às vezes adoece e tem de ser tratado com cuidados especiais.
Às vezes os casamentos têm de ir às urgências. Mas quanto mais crescem, menos
emergências há e melhor sabemos lidar com elas.
Se calhar, os casais apaixonados que têm filhos também ganhariam em pensar no
primeiro filho que têm como sendo o segundo. O filho mais velho é o casamento
deles. É irmão mais velho do que nasce e ajuda a tratar dele. O bebé idealmente
é amado e cuidado pela mãe, pelo pai e pelo casamento feliz dos pais.
Se o primeiro filho que nasce é considerado o primeiro, pode apagar o casamento
ou substitui-lo. Os pais jovens - os homens e as mulheres - têm de tomar conta
de ambos os filhos. Se a mãe está a tratar do filho em carne e osso, o pai, em
vez de queixar-se da falta de atenção, deve tratar do mais velho: do casamento
deles, mantendo-o romântico e atencioso.
Ao contrário dos outros filhos, o primeiro nunca sai de casa, está sempre lá.
Vale a pena tratar dele. Em contrapartida, ao contrário dos outros filhos,
desaparece para sempre com a maior das facilidades e as mais pequenas
desatenções. O casamento feliz faz parte da família e faz bem a todos os que
também fazem parte dela.
Os livros que li dão a ideia de que os casamentos felizes dão muito trabalho.
Mas se dão muito trabalho como é que podem ser felizes? Os livros que li vêem o
casamento como uma relação entre duas pessoas em que ambas transigem e
transaccionam para continuarem juntas sem serem infelizes. Que grande chatice!
Quando vemos o trabalho que os filhos pequenos dão aos pais, parece-nos muito e
mal pago, porque não estamos a receber nada em troca. Só vemos a despesa: o
miúdo aos berros e a mãe aflita, a desfazer-se em mimos.
É a mesma coisa com os casamentos felizes. Os pais felizes reconhecem o
trabalho que os filhos dão mas, regra geral, acham que vale a pena. Isto é, que
ficaram a ganhar, por muito que tenham perdido. O que recebem do filho compensa
o que lhe deram. E mais: também pensam que fizeram bem ao filho. Sacrificam-se
mas sentem-se recompensados.Num casamento feliz, cada um pensa que tem mais a
perder do que o outro, caso o casamento desapareça. Sente que, se isso
acontecer, fica sem nada. É do amor. Só perdeu o casamento deles, que eles
criaram, mas sente que perdeu tudo: ela, o casamento deles e ele próprio, por
já não se reconhecer sozinho, por já não saber quem é - ou querer estar com
essa pessoa que ele é.
Se o casamento for pensado e vivido como uma troca vantajosa - tu dás-me isto e
eu dou-te aquilo e ambos ficamos melhores do que se estivéssemos sozinhos -,
até pode ser feliz, mas não é um casamento de amor.
Quando se ama, não se consegue pensar assim. E agora vem a parte em que se
percebe que estes conselhos de nada valem - porque quando se ama e se é amado,
é fácil ser-se feliz. É uma sorte estar-se casado com a pessoa que se ama,
mesmo que ela não nos ame.
Ouvir um casado feliz a falar dos segredos de um casamento feliz é como ouvir
um bilionário a explicar como é que se deve tomar conta de uma frota de aviões
particulares - quantos e quais se devem comprar e quais as garrafas que se deve
ter no bar, para agradar aos convidados.
Dirijo-me então às únicas pessoas que poderão aproveitar os meus conselhos:
homens apaixonados pelas mulheres com quem estão casados.
E às mulheres apaixonadas pelos homens com quem estão casadas? Não tenho nada a
dizer. Até porque a minha mulher continua a ser um mistério para mim. É um
mistério que adoro, mas constitui uma ignorância especulativa quase total.
Assim chego ao primeiro conselho: os homens são homens e as mulheres são
mulheres. A mulher pode ser muito amiga, mas não é um gajo. O marido pode ser
muito amigo, mas não é uma amiga.
Nos livros profissionais, dizem que a única grande diferença entre homens e
mulheres é a maneira como "lidam com o conflito": os homens evitam
mais do que as mulheres. Fogem. Recolhem-se, preferem ficar calados.
Por acaso é verdade. Os livros podem ser da treta mas os homens são mais
fugidios.
Em vez de lutar contra isso, o marido deve ceder a essa cobardia e recolher-se
sempre que a discussão der para o torto. Não pode ser é de repente. Tem de
discutir (dizê-las e ouvi-las) um bocadinho antes de fugir.
Não pode é sair de casa ou ir ter com outra pessoa. Deve ficar sozinho, calado,
a fumegar e a sofrer. Ele prende-se ali para não dizer coisas más.
As más coisas ditas não se podem desdizer. Ficam ditas. São inesquecíveis. Ou,
pior ainda, de se repetirem tanto, banalizam-se. Perdem força e, com essa
força, perde-se muito mais.
As zangas passam porque são substituídas pela saudade. No momento da zanga, a
solidão protege-nos de nós mesmos e das nossas mulheres. Mas pouco - ou muito -
depois, a saudade e a solidão tornam-se insuportáveis e zangamo-nos com a
própria zanga. Dantes estávamos apenas magoados. Agora continuamos magoados mas
também estamos um bocadinho arrependidos e esperamos que ela também esteja um bocadinho.
Nunca podemos esconder os nossos sentimentos mas podemos esconder-nos até poder
mostrá-los com gentileza e mágoa que queira mimo e não proclamação.
Consiste este segredo em esperar que o nosso amor por ela nos puxe e nos
conduza. A tempestade passa, fica o orgulho mas, mesmo com o orgulho, lá
aparece a saudade e a vontade de estar com ela e, sobretudo, empurrador, o
tamanho do amor que lhe temos comparado com as dimensões tacanhas daquela
raivinha ou mágoa. Ou comparando o que ganhamos em permanecer ali sozinhos com
o que perdemos por não estar com ela.
Mas não se pode condescender ou disfarçar. Para haver respeito, temos de nos
fazer respeitar. Tem de ficar tudo dito, exprimido com o devido amuo de parte a
parte, até se tornar na conversa abençoada acerca de quem é que gosta menos do
outro.Há conflitos irresolúveis que chegam para ginasticar qualquer casal
apaixonado sem ter de inventar outros. Assim como o primeiro dever do médico é
não fazer mal ao doente, o primeiro cuidado de um casamento feliz é não
inventar e acrescentar conflitos desnecessários.
No dia-a-dia, é preciso haver arenas designadas onde possamos marrar uns com os
outros à vontade. No nosso caso, é a cozinha. Discutimos cada garfo, cada
pitada de sal, cada lugar no frigorífico com desabrida selvajaria.
Carregamos a cozinha de significados substituídos - violentos mas saudáveis e,
com um bocadinho de boa vontade, irreconhecíveis. Não sabemos o que representam
as cores dos pratos nas discussões que desencadeiam. Alguma coisa má -
competitiva, agressiva - há-de ser. Poderíamos saber, se nos déssemos ao
trabalho, mas preferimos assim.
A cozinha está encarregada de representar os nossos conflitos profundos,
permanentes e, se calhar, irresolúveis. Não interessa. Ela fornece-nos uma
solução superficial e temporária - mas altamente satisfatória e renovável.
Passando a porta da cozinha para irmos jantar, é como se o diabo tivesse ficado
lá dentro.
Outro coliseu de carnificina autorizada, que mesmo os casais que não podem um
com o outro têm prazer em frequentar, é o automóvel. Aí representamos, através
da comodidade dos mapas e das estradas mesmo ali aos nossos pés, as nossas
brigas primais acerca das nossas autonomias, direcções e autoridades para tomar
decisões que nos afectam aos dois, blá blá blá.
Vendo bem, os casamentos felizes são muito mais dramáticos, violentos,
divertidos e surpreendentes do que os infelizes. Nos casamentos infelizes é que
pode haver, mantidas inteligentemente as distâncias, paz e sossego no lar.
Miguel Esteves Cardoso, in "Jornal Público"